Travessia dos Alpes II

(hike & fly)

2ª temporada

https://www.google.com/maps/d/embed?mid=1u8gHbYfGDrWJ0OqCqQNo0NUqgVC5afwf

Ter dado o primeiro passo quase há um ano, fez com que se me tivessem aberto portas para uma nova realidade. Fazer travessias no magnífico mundo dos Alpes, passou a fazer parte do cardápio para férias. 

Em conversa com um amigo, fiquei a saber que uma travessia W/E seria mais fácil. Então rapidamente surgiu a ideia Genebra – Bérgamo.  Depois surgiu o COVID-19 e a dúvida de que esta viagem se pudesse realizar manteve-se quase até à partida. As fronteiras na Suíça abriram dia 15 de Junho e eu viajei a 19, os Italianos diziam que abririam fronteiras a 1 Julho e eu tinha regresso a 4.
 Começaria em Annecy. Depois, se passaria a N ou a S do Monte Branco seria a 1ª dúvida e, caso passasse a S, se subiria depois por Martigny ou por S do Matterhorn seria a segunda dúvida a desfazer. Decidi que seria o 1º voo a trazer-me a resposta à 1ª indecisão.

Quando cheguei a Annecy, vi as previsões para a 1ª semana que me pareceram bastante animadoras. Teria de evitar ao máximo aterrar nos vales para reduzir horas de caminhada que poderiam comprometer um dia de voo. Além disso, andava a sentir-me bastante cansado, pelo que sabia que não podia repetir a dose de kms e desnível do ano passado.

21 Junho 2020
 

Dia com muitas nuvens e vento relativamente forte de N. Seria o início de mais uma travessia nos Alpes, mas aquele em que provavelmente estaria mais acompanhado de outros parapentistas. Talvez por isso, os nervos eram apenas qb. O dia não estava a funcionar muito bem – a ponto de não ver ninguém a fazer a travessia para o outro lado do lago – e eu ceguei tanto na minha trajetória pré-definida, que mesmo com estas condições não alterei o meu trajeto inicial e optei por passar a S de La Tournette. Se foi para manter em aberto a possibilidade de fazer a travessia a S do Monte Branco ou se foi apenas burrice, não sei responder. 

Subi relativamente bem a N da descolagem e tentei sair uma primeira vez. A perder muito, voltei atrás. Voltei a subir e fui-me encostar à montanha a SE da descolagem. Pouco ganhei e rapidamente perdi quando saí para sotavento. As pequenas encostas a S “fizeram manguito” e fiquei a meia encosta. Mal tinha saboreado as paisagens e já estava de novo no chão. O lago, o sol na planície, as montanhas a S e a E, tudo me tinha passado pelos olhos de uma forma muito fugaz. Estava contente por estar de novo livre a percorrer os Alpes, mas, claro, também triste porque não eram horas de estar a dobrar a asa. O MAPS.ME mostrava-me um lago já ali, a 8,9km, e o Google Maps dizia-me que para W muito provavelmente conseguiria descolar. Toca a subir 1100m para o Lac du Mont Charvin. Da crista via-se o Monte Branco e esta encosta escarpada virada a E/SE estava a sugerir um voo matinal. Só teria de descobrir uma descolagem!

Link do Voo: http://www.xcportugal.org/index.php?name=leonardo&op=show_flight&flightID=76547

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ckilzolm600013a6gczraehkt


22 Junho


 Mal acordo, subo à crista logo antes do pequeno-almoço. A paisagem está soberba, especialmente o vale a E da crista, com o Monte Branco a rematar a linha do horizonte. Já só me imagino a sobrevoar este vale, e com isto cresce um nervosinho. É que se quiser fazer o tal voo cedo, não terei uma descolagem muito famosa. As previsões para hoje são de vento mais forte que ontem e bastantes nuvens. Decido fazer umas caminhadas às redondezas e ir vendo o evoluir do dia.  Não encontro a tal descolagem de jeito para E, o Mont Charvin encontra-se coberto por nuvens e instala-se a indecisão e os dilemas. Descolar ainda hoje para W, com estes tectos baixos? Estará o vento demasiado forte? Se ficar aqui até amanhã arrisco uma descolagem para E ou aguardo para W??? O que me vale é que esta paisagem é deslumbrante. Que todas as dúvidas da minha vida fossem dissipadas numa paisagem destas!

Já a tarde ia longa, quando começo a ter visões. Um parapente na base da nuvem que envolve o Mont Charvin, e depois outro. Após vários segundos em que aqueles dois parapentes não desaparecem como fumaça, começam os insultos à minha pessoa, pois afinal não eram visões!! “Já que não fizeste um cross, pelo menos vai fazer um dinâmico nestas paredes!” Desmontar tenda, arrumar tudo no saco, subir uns metros, preparar material todo para descolar e… pumba. Alguém desliga a ventoinha. Voltar a arrumar tudo, descer, e voltar a montar a tenda. Para afogar as mágoas, subo à crista para assistir ao pôr-do-Sol de um lado e o Mont Blanc do outro! Afinal, nem tudo são rosas… mas quase!


23 Junho


 Acordo à mesma hora do dia anterior e repito a dose. Antes do pequeno-almoço, vou cumprimentar o Mont Blanc. O dia está a pedir que descole cedo. A ideia é fazer esta encosta pela sua face E/SE na sua totalidade e depois passar o vale de Sallanches para as paredes N de Passy, ou fazer a 1ª parte desta crista até “La Giettaz” e aí passar para a face W/NW cruzando depois no final para Passy. Encontro-me na crista que sobe para o cume do Mont Charvin, virado para N. À minha direita tenho a escarpa. Se me puser mesmo na ponta, sinto a brisa a funcionar. As nuvens passam acima de mim vindas de S e a meteo dava NW para hoje – está aqui uma rica mistura, está! Já tinha descolado uma vez do “Dent de Crolles”, em que a descolagem também se faz paralelo à escarpa, mas… pois! Não é bem a mesma coisa! Digo ao “anjinho” que desta vez vou dar ouvidos ao “diabinho”, mas que ele não vá para muito longe porque ainda posso precisar dele.
Onde me encontro para descolar, não há sequer uma pequena erva a abanar. Dou uns passos com energia, e num instante a asa arranca-me do chão. Passa-me uns bons 45ºs e penso logo: “Pronto! Fizeste merda!” Mas o Anjinho não se tinha ido embora! A pendente era tipo Sra. da Graça e, quando desfaço o pêndulo, dou apenas mais dois passos e saio a voar. Ligo o Flymaster já em voo e vou importunar uns abutres. Está a funcionar bem junto à parede e afastado na nuvem, o que me permite relaxar depois de uma pré-descolagem e descolagem muito stressantes. Mas talvez por ter relaxado demais afasto-me demasiado da parede, e faço o resto da parede desta 1ª crista sempre a perder. Um dia BOM a negrito e eu no chão, a esta hora, marrecado. Não perco tempo com lamúrias e rapidamente estou de novo com a asa às costas em direção a uma nova descolagem. Fico todo contente quando vejo o teleférico de “L’Étale” a funcionar… mas estava em manutenção. Uns parapentes no ar renovam-me a motivação e apenas me permito descansar quando chego ao local para descolar. Desde que aterrei até ter chegado a uma nova descolagem, demorei pouco mais de 2h.  Finalmente no ar novamente. Já há bastantes nuvens no céu, ao ponto de nem sempre conseguir ver o Mont Blac. Sigo pela crista eufórico. O dia está lindo e a paisagem ao meu redor enche-me a alma. Percorro, diversas vezes, com o olhar o percurso que já fiz desde “La Tournett”: a aposta que fiz em ter feito um voo cedo não comprometeu o dia.  Estou quase a chegar ao final da crista quando uma boa térmica deriva para o meu caminho previsto. Na encosta de lá tenho uma nuvem que queria evitar mas, como chego relativamente baixo, não tenho por onde fugir. A recepção é bastante calorosa! Se fosse um jogo de futebol, a equipa adversária tinha sido toda expulsa com tanta entrada a pés juntos. Numa delas, a asa foi-me tão atrás, que tive de dar uma volta dos manobradores aos punhos para segurar o cabeceio. De novo de olhos postos no Monte Branco (depois desses mesmos olhos terem passado pela pega do reserva), sigo para mais umas térmicas. Glacier des Bossons, Mont Blanc, Glacier de Bionnassay, Glacier de Trelatete… Bem! Eles estavam a pedir! Não dava para passar por ali sem dizer um olá mais demorado e amanhã haveria outro BOM a negrito. Com uma paisagem deslumbrante a 360º,não podia ter escolhido melhor aterragem. Depois da frustração da marreca, tinha agora uma recompensa de todo o tamanho. Não cabia em mim de tanta felicidade e a asa teve de esperar bem mais de meia hora até que a dobrasse.  Um pouco abaixo, tinha uma pequeno lago onde aproveitei para lavar a roupa e o corpo e passar parte da tarde. A noite, essa seria passada na 1ª fila, bem em frente ao palco!

Link do 1º voo: http://www.xcportugal.org/index.php?name=leonardo&op=show_flight&flightID=76607

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ckilzxfqn00013a6g85asx49a

Link do 2ºvoo: http://www.xcportugal.org/index.php?name=leonardo&op=show_flight&flightID=76627

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ckim0ciiy00013a6gwn46x7nj

24 Junho
 

Acordei com o sol a pintar a cabeça do Mont Blanc. Pouco tempo depois, vi um ponto a afastar-se do cume, do lado esquerdo, para E, e logo de seguida outro, mas para W: já havia dois “móderfóquers” a voar lá nos píncaros!

Depois, entretenho-me a ver 2 balões de ar quente para W, e entretanto começam os primeiros parapentes a descolar, pouco depois do teleférico entrar a funcionar. O nervosinho começa a instalar-se em mim, apesar de hoje ter “windummys”. 

Estava eu ainda à espera de uns raios de Sol mais fortes para me acabarem de secar a tenda, quando passou um parapente a uns 100m acima de mim: guarda-se a tenda mesmo assim, que não enferruja! A excitação era tanta que nem esperei por uma brisa, por mais pequena que fosse, para descolar em invertido. Claro que falhei a descolagem, e barafustei: “eu disse-te que não dava, car…!” 

Finalmente no ar, com aqueles colossos todos. Glaciares de todos os feitios, os jurasses, agulhas, dentes de gigante e, claro, o imponente Monte Branco. Os montes a NW que me perdoem, mas neste troço só consegui olhar para SE. Ao deixar esta parte do maciço do MB para trás, a diferença foi enorme. Deixei de ter um maciço enorme que me fazia olhar para cima e onde o Monte Branco reinava, para passar a a reinar o verde e altitudes bem mais modestas. Estava a entrar na Suíça. E logo de seguida uma nova diferença abismal. Depois de estar “sufocado” por gigantescas montanhas em vales relativamente estreitos, eis que me encontrava a atravessar o Rio Rodano, num vale seguramente dos mais largos dos Alpes… e eu bastante baixo. Depois de ter feito esta segunda parte do voo sempre baixo, fiquei com a sensação que esta passagem do vale teria de ser feita com mais altitude. Até porque tinha feito a última parte do voo até ali com outro parapentista, que ficou a entubar enquanto eu iniciava a travessia. Já do lado de lá, onde praticamente só havia os estradões entre vinhas para aterrar, o outro parapentista juntou-se a mim e ainda fizemos uns bons kms a trabalhar em equipa. Foi sobrevivência pura até Sion (Savièse).

Aterrado em Savièse, já não subo para Anzère e desço para a cidade. Tenho lá em baixo umas Super Bock’s à minha espera na companhia do Filipe (Soneca), que me deu jantar e guarida para essa noite.

Link do voo: http://www.xcportugal.org/index.php?name=leonardo&op=show_flight&flightID=76660

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ckim0j92g00013a6g81kp3ksi

25 Junho 
 

Tomo o pequeno-almoço à pressa para apanhar o 1º autocarro para Anzère, mas já só apanho o 2º. Quero aproveitar, porque, pelas previsões, este será o melhor dos próximos dias. No dia seguinte ainda se voa, mas depois terei 3 dias de chuva. Já lá em cima, vejo os teleféricos em movimento e fico todo contente com mais esta boleia, mas só começam a funcionar no dia seguinte . Hoje será só para levar mantimentos.

Pouco depois de descolar, já subo o suficiente para me lembrar que ontem, por ter feito este vale muito rasteirinho, perdi grande parte da paisagem que agora me volta a deslumbrar. As nuvens começam a crescer demasiado rápido e tenho de ameaçar espaço aéreo reservado para me desviar duma. Este crescimento ameaçador mantém-se e a paisagem para E não me dá confiança para continuar o voo. Vejo que tenho neve para repor a água, boa relvinha para aterrar, descolar montar tenda e uma óptima paisagem para desfrutar, pelo que decido aterrar. Ao longo da tarde, o tempo descamba em vários sítios e ao final da tarde vem a trovoada. A paisagem, essa, continua magnífica.

Link do voo: http://www.xcportugal.org/index.php?name=leonardo&op=show_flight&flightID=76667

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ckim0pgz900013a6ghk1nqweq

26 Junho
 

Acordo com o Sol já a iluminar as altas montanhas dos maciços em frente.  Tento perceber se já consigo avistar o Matterhorn, mas ainda não está visível.  Às 10h as nuvens formam-se e desaparecem rapidamente. Hoje há previsões de mais vento, o que não me deixa confortável. Dou uma espreitadela ao Live track da Flymaster a ver se já há actividade parapentista nos arredores, e nada.  

Descolo quando já há umas nuvens um pouco mais consistentes. Contorno o monte onde descolei e parece-me que já estou a voar a boa velocidade. No morro seguinte, subo pouco com uns 8’s, e na passagem do vale, estreito, a nuvem que lá me chamou deixa-me pendurado. Nada está a funcionar! Queria muito chegar ao Aletsch bastante alto, mas só o querer não chega. As paredes expostas ao Sol não estão a funcionar, e por isso tento ir para as paredes viradas ao meteorológico de NW. Mas chego tão baixo que nem chego a perceber se funcionaria. 

Pela 1ª vez nesta travessia, aterro fora da montanha.  O calor está insuportável e tenho alguns dias de chuva pela frente. Abasteço a despensa e almoço como se não houvesse amanhã.  Depois vou até Bitsh. Apercebo-me que estou em contra-relógio para ainda ir dormir com vistas para o Aletsch e apanho um comboio para Mörel ainda a tempo de apanhar o teleférico para Riederalp West.  Ainda faço uma pequena caminhada até um miradouro, mas monto a tenda no bosque.  

O voo não tinha corrido muito bem, mas agora estava na companhia de, provavelmente, o mais bonito glaciar que alguma vez vira… e com prognóstico para assim me manter por vários dias.

Link do voo: http://www.xcportugal.org/index.php?name=leonardo&op=show_flight&flightID=76677

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ckim0vhmj00013a6gr3sfogso

27 Junho
 

Acordo mais tarde que o costume, devido ao facto de estar envolto por árvores que não deixam o Sol penetrar. Ainda tenho uma réstia de esperança de fazer um voo cedo, por isso não demoro muito a fazer-me ao caminho. Demoro é depois durante o caminho, pela quantidade de paragens que faço para observar o Aletsch. O tempo não está promissor e fico com receio de marrecar, mas vou-me equipando. Estou quase preparado para descolar quando vêm umas rajadas fortes e laterais. Após alguma espera, mudo de sítio e reposiciono-me para o vento, mas as rajadas continuam a ser demasiado fortes. Entretanto, e estando tudo azul para S, começa a ficar bem escuro e carregado para N. Ainda a acreditar num milagre, começo a sentir as primeiras pingas. Começo a dobrar tudo à pressa e abrigo-me numa pedra. Passado o dilúvio, tiro bilhete para a 1ª fila virada para o Aletsch.

28 Junho

 Alguma chuva miudinha durante a noite. Levanto arraiais e vou dar uma caminhada pela crista para ver um pouco mais do Aletsch. Depois monto tenda de onde não seja visto dos teleféricos, onde tenha água/neve e onde tenha uma vista privilegiada sobre o Aletsch: as previsões são de chuva forte para amanhã, por isso é para ficar duas noites.

29 Junho 

 Chuva e mais chuva, e neve nos pontos mais altos. Mas, quando abriu, tive dos mais lindos finais de tarde: Matterhorn, Monte Rosa e todos os outros destapados. Até o Monte Branco se deixou ver!

30 Junho
 

Manhã muito fresquinha. Vou cedo para o spot da descolagem, pois quero ver o evoluir do dia. As previsões são boas e é o melhor dia de mais três possíveis. Há vários parapentistas no ar mas todos rasteirinhos. A única nuvem em todo este céu está precisamente na descolagem oficial de Fiesch, e teima em não subir. Demora até que alguns parapentistas subam acima de onde estou.

Hoje estava com alguma esperança de conseguir fazer este vale para NE até Ulrichen – onde faria depois o “Passo della Novena” – e depois fazer ainda grande parte do vale de Airolo. Mas, com o dia a começar tão tarde, já fico com algumas dúvidas. Não há nenhum “windummy” alto, e os que passam o vale do Glaciar Fieschergletscher (Fieschertal) chegam à outra encosta muito baixos e já não os vejo a subir. Por fim, fica apenas um parapentista próximo à descolagem oficial a subir devagar, quando começo a ter umas rajadas fortes e laterais. Penso que é melhor ir para o ar e tentar sobreviver do que arriscar ficar com a descolagem varrida pelo vento. Descolo, o outro parapentista vai para baixo, e fico sem referências.

_Bonito: chegaram a estar aqui uns 10 parapentistas, e agora que precisava de uma ajuda… Parece que vem aí uma tempestade e só eu é que não sei!

Vou para cima da descolagem oficial e começo a subir. Ando ali “aos papéis”, com um bom assimétrico à mistura, mas ainda não consigo ver o Aletsch em condições. Insisto, até que finalmente se sobe um pouco mais, e consigo fazer-me a vontade de ver este espectáculo em pleno voo. Já feliz da vida, volto a dar tempo de antena a toda magnífica paisagem que me rodeia e a pensar na sorte que tenho de estar a voar, e logo num sítio destes.

Estava a tentar perceber em que vale teria de virar, quando vejo que o vale termina abruptamente e se eleva logo uma gigantesca parede. A parede do Furkapass! É magnífico como um vale tão largo acaba assim tão de repente!

Eu viro um pouco antes e começo-me a despedir deste imenso e bonito vale. Chegado ao lado de lá, e já no vale para o Nuefenen Pass, pouco ou nada apanho, e as eólicas do lago Griessee dizem-me que lá em cima vou ter vento contra.

Aterro a meio do vale ainda cedo. As condições mantêm-se boas e quero tentar subir rapidamente os 7km que tenho pela frente com 700m de desnível, para ainda tentar fazer uma perninha do vale de Airolo: de preferência, aterrar no vale para abastecer a despensa e subir no dia seguinte. Se não tiver teleférico, é preferível desperdiçar o dia seguinte, que é o mais fraco dos dois que restam.  Só que subir rápido é muito relativo e chego lá em cima já com algum avanço nas horas. E, como se não bastasse, aquilo parece a festa dos cabos e postes de alta tensão! Afinal não era só chegar ao colo e descolar: ainda tinha de subir mais um pouco para conseguir passar por cima dos cabos.

As horas estavam a passar, e queria ir para o vale a todo o custo! O ganho em relação aos postes não era significativo, e coloquei a hipótese de passá-los por baixo – mas até isso seria difícil pois havia duas linhas de postes, e desencontrados. Do sítio que encontrei para descolar, não se via se uns kms à frente dava para passar entre a montanha e os postes/cabos – e o dia a escurecer. Mesmo que desse para passar, não sabia se a seguir o emaranhado de postes e cabos ia acabar, se iam passar para a outra encosta, ou como estaria no vale para aterrar, e a esta hora já não podia contar com a actividade térmica.

A parte de mim com algum juízo tentou abortar a descolagem várias vezes. Quando já estava pronto e de manobradores nas mãos, a outra parte, nas suas alegações finais, argumentava que poderia sempre aterrar mesmo antes do sítio onde a montanha quase beijava os cabos.

Não fosse ter de tomar a decisão de abortar ou não o voo caso não houvesse passagem, este voo parecia os de Linhares, no início do curso, já depois do pôr-do-sol, só a ouvir o vento e a respirar tranquilidade. 

Com todo este estendal montado, não tenho qualquer hipótese de passagem. Aterro e conformo-me com ter de dormir em plenos Alpes, junto a esta grande invenção humana, mas horribilis poluição visual. Tomo banho no pequeno e gelado riacho e lavo a roupa.

_Amanhã terei de arranjar forma de ir para baixo!

Link do 1º voo: http://www.xcportugal.org/index.php?name=leonardo&op=show_flight&flightID=76800

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ckim10qya00013a6guw66h1d7

Link do 2º voo: http://www.xcportugal.org/index.php?name=leonardo&op=show_flight&flightID=76804

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ckim15jww00013a6ga58k4i3v

1 Julho
 

Cedo o céu se enche de nuvens. Caminho até a encosta deixar de ter a companhia dos cabos e postes, e depois continuo a caminhar até arranjar uma clareira para poder descolar e fazer uma marreca para o vale. Ter uma asa às costas e ter de descer a pé o monte todo, é demasiado frustrante!!! Uma clareira e um espaço entre árvores suficientemente larga para descolar. Volta e meia vem uma brisa que me vai permitir descolar. Tudo pronto. Só me falta ligar o Flymaster apenas para me registar o voo e… o bordo de ataque desliza pelo resto da asa. Vento descendente… seguido de umas 1ªs pingas. Onde é que eu já vi isto!?!? Toca a arrumar tudo e abrigar-me um pouco no telhado do refúgio que há aqui. Vou ter mesmo de descer a pé.  O primeiro lugarejo que encontro é Ronco. E aqui bebo a cervejinha da praxe da comemoração de mais uma travessia neste belo paraíso que são os Alpes.

 No dia seguinte perdi um bom dia de voo. Talvez o dia em que as previsões saíram mais ao lado. Mas não me sentia com forças para caminhar mais 5h.

No final da travessia encontrei este companheiro. Não sei porquê, mas senti logo uma afinidade por ele!!

 Foi uma primeira semana que podia ter voado todos os dias, em que os dias que não voei podia ter feito vôos locais, e uma segunda semana a fazer “parawaiting” num spot que não dava para enjoar. Os dias que mais me marcaram foram o dia em que aterrei em frente ao Monte Branco, o que descolei desse mesmo sitio e o que descolei junto ao Aletsch.
* O 1º porque tive de tomar opções importantes. Desde o sitio e condições da primeira descolagem, ao grande risco de poder marrecar com um dia BOM pela frente. Depois porque apesar de ter marrecado, consegui pôr-me a descolar ainda em tempo útil. E por fim, por ter aterrado onde aterrei.

* O 2º, pela imponência de todo aquele maciço que mal me deixou olhar para outro lado, pelo contraste dos brancos para os verdes antes de Martigny e por todos os kms em sobrevivência na 2ª parte do voo, apesar de ter ficado privado de paisagens com outra substância.   

* O 3º , porque vi o Aletsch em vôo… e basta!


 Em Agosto “nasceriam”  mais dois X-Alpers Portugueses, por isso foi só com um “até já” bastante curto que me dirigi aos Alpes. Voltaria em breve, com as crónicas e fotos do Pedro e do Filipe.

Já no regresso, a tentar reconhecer o meu trajecto!

O mesmo equipamento do ano passado, excepto a mochila. Levei outra que tinha a precinta da cintura mais curta.

Apps usadas: Goole Maps / Maps.me / Paraglidable / Morecast / Meteoblue / Windy

Sites usados: SpotAir / Winds.mobi

Material usado: Asa / Cadeira light / Paraquedas de emergência / Capacete/ Cockpit / Flymaster Live SD / Mochila / Bússola / Óculos / Luvas / Action camera + suporte p/ capacete + bateria extra + carregador / Balaclava / Chapéu / Gola / Bastões de caminhada / Camelbak / Tenda / Colchonete insuflável / Frontal / Toalha pequena / Saco-cama / Mochila pequena / Protector impermeável de mochila / Pastilhas para água / Lençol de sobrevivência / Botas / Calças.calções / Leggings cardadas finas / Leggings cardadas grossas / T-shirt algodão / T-shirt poliester / Sweet 1ª camada / Sweet cardada / Forro polar / Casaco PrimaLoft / Casaco Impermeável / Luvas de forro polar / Luvas finas / 2 pares de boxers / 2 pares de meias / Botija de gás / Fogão / Isqueiro / Tacho + copo + garfo + faca + colher / Sacos zip / Fita adesiva / 2 cabos usb + adaptador / MP3 / Telemóvel / Powerbank 30.000mAh / Protector solar / Ligadura elástica / Corta unhas / Escova e pasta dos dentes / Sabonete/ Papel higiénico / Bolsa porta documentos / Remendos e fios para asa (e para estendal).

Travessia dos Alpes

(hike & fly)

Estávamos em Maio de 2008. Com poucas horas de vôo de experiência, e uma asa que já tinha dado o que havia para dar, mandei-me para Chamonix, sozinho. Em 3 semanas nos Alpes, apenas fiz 3 marrecas (marreca: acto ou efeito de descer compulsivamente após a descolagem) no único dia de Sol e vento fraco. Na 1ª descolagem, em alpino, fiquei com um ramo agarrado nos fios do manobrador. Umas pequenas bombadas e consigo tirar o ramo… e partir uma linha que ligava a três, ao bordo de fuga. Dei um nó à pescador (Isso! Ficou mais curto!!), e no 3º vôo/marreca, numa enroladela mais apertada e a contemplar o “Glaciar des Bossons”, faço um helicóptero sem querer, junto à encosta. Sem perceber bem o que se tinha passado na altura, arrumo tudo e digo a mim mesmo “voltarei, mas mais bem preparado“.

Era um pouco de sonho e muito de utopia, a ideia de um dia atravessar parte dos Alpes a pé e a voar. Pouca experiência e material muito pesado, eram desculpas de peso para esse sonho não passar de uma miragem. A experiência fui-a ganhando aos poucos, com alguns vôos em zonas de montanha com camaradas do mesmo vício, nos Dolomites, Himalaias e Pirinéus, e já há 2 anos que tinha o equipamento necessário para tão desejado “hike & fly”. Agora só me faltava arranjar os “COJONES”! As desculpas sucediam-se! Este ano até tentei arranjar boleia para lá. Podia ser que não arranjasse, e aí teria novamente uma desculpa. “Oh! Não arranjei boleia!!” Não estava a ser correcto para comigo mesmo. A vontade de ir estava sempre em conflito com a coragem de o fazer. Resolvi a questão, comprando o bilhete de avião. Pronto! Agora teria SÓ de arranjar os “COJONES”!

Comprei o bilhete para Munique, pelo preço, e não por qualquer zona específica dos Alpes a querer percorrer. Tirando o Matterhorn (que está na lista), era-me indiferente o pedaço de maravilhosa terra Alpina a percorrer. Passado dois dias compro o bilhete de volta. Seria por Bergamo o regresso. A ideia de voltar também por Munique e fazer um circuito pelos Alpes ficou de fora porque poderia correr o risco de preferir fazer um circuito pelos bares e cervejarias de Munique. Por Bergamo, teria mesmo de atravessar os Alpes! Mas mesmo nesta altura, atravessar ainda não significava necessariamente fazê-lo a voar. Pois só na véspera experimentei colocar tudo na cadeira como se fosse descolar. Parecia que as costuras da cadeira iam todas rebentar, e ainda faltava a água, a comida e a botija de gás. Aqui, a vontade a sobrepôr-se a tudo o resto! Equacionei não comer refeições quentes e andar a frutos secos e barras energéticas, pelo menos na montanha, caso não conseguisse colocar tudo dentro, mas sabia que ainda tinha espaço no cockpit e numa pequena mochila, que poderia levar ao peito enquanto voava.

Depois de tirada esta foto, ainda retirei o casaco preto.

A partir de Munique tinha várias hipóteses, entre Salzburgo e Garmish-Partenkirshen. Escolhi Garmish por ser um ambiente mais alpino, e a partir daqui comecei a estudar a possível rota até Bergamo. Contornar Zugspitze, seguir pelo vale de Imst até Landeck, depois pelo vale de Tosens até Nauders. Depois aqui ou iria para S e teria de contornar o maciço de Ortler e depois fazia o vale de Tirano e Sondrio, ou seguiria para SW e iria o resto da travessia pela Suíça, por Scuol, Samedan, Chiavenna até ao Lago di Como. Mas esta parte seria decidida mais para a frente.

Dia 1 (2.7.2019)

Usei a app MAPS.ME para me guiar no chão. Da Estação de comboios em Garmish até Osterfelderkopt (Alpspix), dava-me 12km e um desnível de 1344m. Até Hammersbach foi tudo plano, mas quando começou a subir… Foi como que a dizer: “Se quiseres desistir é agora, porque a partir daqui não há cá subidas como as do Gerês. Aqui, quando é para subir, É PARA SUBIR!!!”. Demasiado tarde! A parte mais difícil já estava ultrapassada há muito, com a compra do bilhete de avião. Estava a viver um sonho, e a palavra “desistir” já não fazia parte do dicionário. As previsões para o dia seguinte mantinham-se más, por isso não havia pressa (nem força) para subir tudo no mesmo dia. Fiquei no bosque, junto a Kreuzeckhaus. Apesar de saber que era muito importante alimentar-me, o cansaço levou-me a deitar, mal montei acampamento.

Dia 2

Fiz o resto do percurso até Osterfelderkopt devagar. As nuvens moravam lá em cima, com tímidas abertas pelo meio. Quando o teleférico encerrou, foi quando começou a abrir. Ainda fiz umas caminhadas até umas vias ferratas, mas agora, leve como uma pena. Menos 23kg às costas.

Dia 3

Acordo com uma ligeira neblina a dar ainda mais piada à paisagem. Cedo as nuvens começam a ocupar os cumes, e o meu nervosismo instala-se. Será que se vai manter limpo na descolagem? Até quando? Cedo também chegam os primeiros pilotos. Bilugares e a solo. Falo com alguns deles e a nenhum lhes pareceu possível a passagem pela esquerda até à Áustria, com um tecto relativamente baixo como estava. Teria de passar por toda a encosta N e depois atravessar uma área grande sem aterragens e com inclinação positiva em relação à minha e ao restante vale, antes de entrar na Áustria. Poderia esperar um pouco mais e aguardar que o tecto subisse, mas a possibilidade das nuvens taparem a descolagem e do vento aumentar, fizeram-me optar por não esperar. Estava nervoso! Para além do nervosismo de uma qualquer descolagem, tinha ainda acumulado o de ter de colocar tudo o que me acompanhava nesta travessia, em vôo – e pela primeira vez iria juntar esta cadeira “light” à minha asa. Já tinha feito travessias em autonomia a caminhar, de bicicleta e até de kayak, mas colocar tudo em modo vôo era outro patamar.

Havia bons ciclos, por isso a opção foi descolar invertido. O speedbag bastante leve ficou para trás . Tive que colocar lá os pés com a ajuda das mãos, enquanto passava por cima de cabos de teleférico e contornava o monte para me virar para N. Todos os outros parapentistas viraram a E, para brincarem na montanha a S da aterragem, e eu fui tresmalhado, seguindo o meu caminho para W. Procurei onde subir junto a uma parede que já tinha levado com algum sol, mas era tudo aos soluços e os apagões não me permitiram subir até à nuvem, que estava abaixo dos cumes – ou provavelmente a falta de destreza não mo permitiu. Ao chegar à parede N, vi que o vale já se encontrava varrido. Sem conseguir subir, queria agora tentar aterrar nas clareiras o mais próximo possível do teleférico para ainda aproveitar o bonito dia e tentar, quem sabe, descolar do Zugspitz, mas o vento forte obrigou-me a procurar um lugar mais afastado sem os rotores provocados pelas grandes árvores. Comprei bilhete só de subida. Se não conseguisse descolar, desceria depois para o lado Austríaco. À chegada ao topo mal apreciei a paisagem. A procura de um “T0” para esticar o trapo e descolar, sobrepôs-se a tudo. O vento estava fraco. Vi escarpas para o lado do vale e várias descolagens, mas para dentro do maciço, para o glaciar. Por fim, entre umas antenas e o edifício do teleférico Austríaco, encontro o “T0” que procurava. À saída, teria cabos de teleférico do lado direito e penhasco do lado esquerdo. A asa ficaria meia na neve e meia no cascalho, a intensidade do vento era boa o suficiente para me pôr no ar nos dois passos que tinha para descolar, mas o vento estava lateral.

O vento fica com ciclos de frente e tenho 40min para o último teleférico. Enquanto tento decidir, as nuvens chegam e decidem, por mim, o dilema. Este foi um momento em que senti falta de um(a) parceiro(a), daqueles em que eu digo “mata” e ele(a) “esfola”. Era sítio para descolar!! Fiquei um pouco triste com o dia que tinha acabado por perder! Tive a sensação de que o vale para onde iria agora, virado a W, estaria a funcionar muito bem. Estava a pagar pela falta de confiança de quem ainda só tinha esticado o trapo umas 5 vezes este ano, mas também consciente de que a viagem ainda agora tinha começado e que todas as decisões teriam de ser tomadas com base na segurança. Dormi no Parque de Campismo Dr. Lauth.

Dia 4

O dia reservava-me vento forte, sol, e nuvens daquelas que gostamos num dia de vôo. Percorri 8,9km com um desnível positivo de 1065m, até Grubighutte, e na hora de maior calor encontrava-me na subida, mas na frescura dos bosques. Já depois de Wolfratshauser Hutte, conheço um indivíduo que esteve na organização do X-Alps, no turnpoint de Lermoos. Informo-o das minhas intenções, mas que hoje já só irei apreciar a paisagem lá em cima, pois o vento já está forte demais. Diz ele:”Ah! O Maurer descolou com uma intensidade de vento igual, na descolagem N/NW, fez aquela ladeira, subiu lá ao fundo e foi por aí fora.” E eu a pensar para os meus botões:”Olha-m’este!! A falar de uma águia a uma galinha depenada!!”

Ao final da tarde fiz umas caminhadas de reconhecimento à crista, para ver onde poderia descolar no dia seguinte. O problema da falta de aterragens era o mesmo do 1º vôo. Uma área extensa de vegetação e a primeira vila ficava fora do contacto visual, “ao virar da esquina” de uma montanha. Através do Google Maps, vi que havia um campo junto ao rio. A ideia era descolar cedo e aterrar quanto antes, pois pelas previsões seria dia de vento NW forte novamente e trovoada à tarde, seguido de dois dias de chuva.

Dia 5

A noite foi calma, mas logo pela manhãzinha o vento instalou-se acompanhado de rajadas bastante fortes. Nem queria acreditar que teria de descer tudo aquilo a pé, pois já não tinha comida para mais dois dias. Durante o pequeno-almoço, e enquanto desmonto o acampamento, o vento dá sinais de tréguas e a esperança volta a instalar-se. Subo mais um pouco, ainda sem saber se conseguirei descolar, mas no cume não há vento. Enquanto me equipo há ciclos bastante espaçados e fracos, mas bons o suficiente para inflar invertido. Mas, já quando estou para descolar, vem a primeira brisa de costas. Apresso-me a virar para alpino e descolo, antes que morra na praia.

Começo logo a subir. Fico todo contente pois nunca acreditei que àquela hora já se subisse. Sou logo tentado pela possibilidade do vento não ser assim tão forte, e em sendo, então mais depressa ainda me poder fazer chegar à encosta do lado de lá do vale – depois seria só fazer o dinâmico dessa encosta, e o vale aberto estaria logo ali para então aterrar em segurança. Mas lá me consegui manter focado e não sair da margem de segurança que tinha estabelecido para esta viagem. Depois caminhei 20Km, sempre a descer. Foi um dia bastante quente, atenuado com um banho no lago Sameranger See, pela frescura das árvores e depois pelas nuvens que cobriram os céus. Ao final do dia veio a chuva, e montei tenda num bosque, em Tarrenz.

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ck2u4iac500013a68mz1hssq1

Dia 6

Acordei com a chuva, mas o Sol que veio a seguir rapidamente secou a tenda. Foi o dia todo nesta alternância. Algum frio quando vinha a chuva, e muito calor quando vinha o Sol. A ideia era subir até à zona do final do teleférico de Imst, e descolar de lá no dia seguinte. A comida não era muita, mas não me preocupei porque iria descolar no dia seguinte… ou não! Tinha 10km e 1132m de desnível positivo pela frente. Paro em Latschenhutte para uma merecida cerveja e entretanto o Sol é substituído por uma copiosa chuvada. Os donos do café amavelmente oferecem-me boleia para baixo mas “eu vou para cima”. Com um tempo daqueles, “desejam-me sorte”, mas também me oferecem o jardim para eu montar a tenda se mudar de ideias e resolver ficar. Fico, pois claro! A chuva não dá tréguas e a temperatura cai a pique, mas bem pior é o cheiro emanado pelas minhas roupas e pelo meu corpo. Um banho no bebedouro, e lavagem da roupa foi o que se seguiu.

Dia 7

Ou as previsões saíram completamente ao lado ou o cansaço já nem me permite ver a meteo em condições: chuva, céu completamente coberto e lá em baixo no vale também algumas nuvens. Um dia assim só serve para esvaziar a despensa, que já não está cheia! Nas novas previsões, amanhã é que é.. ou não!

Hoje o café não abre e eu aproveito e fico novamente no jardim.

Dia 8

Acordo com nevoeiro cerrado. Subo até à zona do teleférico e vou aguardando. Ligeiras abertas mostram que o Sol está forte, para lá das nuvens. Forte q.b. para me secar a roupa ainda húmida, nestas pequenas abertas.

Lá em baixo no vale está sol, é o que me dizem as pessoas que vão subindo no teleférico. Poderia tentar fazer uma marreca, apesar de sotaventado e com alguma intensidade, mas dias bons são hoje e amanhã. Se vou hoje para baixo, amanhã nunca estarei a tempo numa qualquer descolagem, e depois volta a chuva para mais dois dias.

Finalmente destapa, à hora que o Sol também já está do lado de lá da montanha, e com isto, o sotavento outrora inofensivo torna-se violento a descer a montanha. Estou desmotivado. A meteo dá para amanhã previsões muito parecidas com as de hoje, com possível aumento de tecto. E já vou com 8 dias de viagem, em que não voei praticamente nada e as previsões para os próximos dias são mais do mesmo: chuva e vento forte. Mais para Sul melhora ligeiramente. Na despensa, há uma refeição quente e um cappuccino. A ideia para amanhã será marrecar o mais próximo possível a Landeck, comer e abastecer a despensa -e, se possível, apanhar um teleférico em Zams para Venet e voltar a fazer uma marreca.

Dia 9

NEVOEIRO!!! Car%&/%$!!!!

Para pequeno-almoço, apenas há… o Cappuccino! Subo mais um bocado e preparo-me para a descolagem, ainda envolto em nevoeiro. Hoje tenho de ir para baixo e caminhar para Sul. Já estou a meio dos meus dias e parece que ainda não saí do início da travessia. Finalmente destapa e fico com um “chapéu” de nuvens mesmo por cima da cabeça. Já devo conseguir ficar bem perto de Landeck, penso eu! Estou tão desmotivado e sem esperança de fazer um bom vôo que me preparo apenas para uma marreca. Vou sem balaclava, sem gola, e com as calças cardadas mais finas. Quem de nós, aéreos, ainda não cometeu esta asneira? Resultado: andei dois dias com os maxilares a doer – mas muitos mais com aquele sorriso estúpido de orelha a orelha!! Mais 30min e descolo para a minha “marreca”, já as nuvens estão uns 200m acima da minha cabeça. Vou directo às montanhas e encosto-me. Quero aproveitar todos os pequenos bafos para chegar o mais próximo possível a Landeck. Está a funcionar bem, e apenas com oitos subo o suficiente para ficar todo eufórico com a paisagem que tenho ao meu redor. Ainda há pouco via não mais de 100m com o nevoeiro, e agora, com nem 5min de vôo, tenho ao meu redor um infindável mar de montanhas sarapintadas de branco, vales verdinhos e cúmulos por todo o lado. Contorno a montanha e fico virado para SW. Perco-me naquela imensidão e beleza!

Subir foi de qualquer maneira. Pontapé daqui, pontapé dacolá, mas mal enrolava. Era só preocupar-me em manter a asa por cima da cabeça e… contemplar! Estava tão incrédulo com tudo aquilo que estava a viver, que disse para mim mesmo, que não interessava o rumo que estava a tomar. Interessava viver o momento intensamente e depois…, nem que tivesse de caminhar tudo novamente para trás.

Apercebo-me que já não tenho camisa no manobrador esquerdo, mas duas nuvens seguidas permitem-me continuar alto sem enrolar, como que a dizer que não é por um manobrador descamisado que vou abortar o vôo. Entretanto, o vale começa a chegar ao fim e lá me decido a seguir a minha trajectória para Sul. Atravesso o vale em direcção ao Sol e com o vento de costas. Já relativamente baixo, encosto-me à montanha abaixo do glaciar e percorro-o até ao topo – e novamente uma paisagem de cortar a respiração. Atravesso novo vale, mas a meio noto algo de diferente: mais turbulência. Já na outra encosta, encontro tudo mais desorganizado até que encontro uma boa térmica a empurrar-me contra a parede. As condições mudaram e eu mudo também o chip.

A partir deste momento, fico em modo aterragem, e com as condições que se puseram não tenho dúvidas quando vejo o vale largo do Lago di Rèsia. A alternativa seria ir pelo vale Scuol, mas agora estava escolhido o restante itinerário. Ainda tentei apanhar a parede de Piz Mundin, Muttler e Piz Tschutta, mas o vento já não me deixou ir brincar para aquelas paredes. Aterragem sem sobressaltos mas na vertical, e agora sim, podia saborear o vôo. O vôo que já tinha valido por toda a viagem, que já se tinha sobreposto a todos os dissabores e desmotivações, e já tinha justificado todo o quilómetro de asa às costas.

Apesar do calor cá em baixo, o corpo ainda demora a refazer-se do frio passado. Agora sim! Depois de abastecer a despensa, posso tomar o pequeno-almoço, nas bordas do Lago di Rèsia. Até ao camping Thoni ainda tenho 9km de caminhada.

As previsões a mostrarem ser o único dia voável até 2a feira. Próximo do local onde aterrei as previsões também não eram nada animadoras.

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ck2qilpr600013a68w8mbt76x

Dia 10

O dia de hoje e os dois próximos não estão com boas previsões para voar, portanto resta-me caminhar. Escolho o Piz Umbrail como próximo ponto de descolagem. Através do Google Earth não consigo ter a certeza que se consiga descolar de lá, mas acredito que se arranje lá um cantito. Separam-me 37km e 2052m de desnível positivo. Faço 19km até um parque de merendas, às portas da Suíça, e monto acampamento.

Dia 11

Caminho 15km, para ficar num sítio daqueles! Lago di Rims.

Dia 12

Acordo com os cumes a dizerem-me que nevou ligeiramente lá para cima. Ao entrar na Suíça fiquei sem internet (plafond esfumou-se em 2min), mas a última vez que tinha visto previsões, estas diziam-me que amanhã teria nova oportunidade para um voaço. Ao final da tarde umas abertas e aproveito para fazer um reconhecimento à subida que vou fazer no dia seguinte.

Dia 13

Acordo às 6h mas volto a adormecer e só volto a acordar 1h depois. A tenda e o protector da mochila estão gelados.Começo a ficar ansioso. Já começam a aparecer os primeiros cúmulos e ainda tenho 3,4km e 589m de desnível para vencer. Vou tomando o pequeno-almoço ao mesmo tempo que vou virando a tenda, assim que os primeiros raios de Sol começam a atingi-la e a vão secando. Parece que nenhuma subida me cansou tanto como esta, mas também em nenhuma delas estava a subir em contra-relógio, com o pensamento que poderia chegar lá em cima já demasiado tarde. Ao chegar ao cume, cruzo-me com vários BTTistas que vão agora descer a montanha. Do lado Sul era impossível descolar. Só escarpas. Mas do lado N uma boa rampa nevada esperava por mim.

Uma muito leve brisa na cara e começo a correr. Num instante já estou de caras com o maciço de Ortler, Zebrù e companhia. Sobe-se facilmente, e a zona do lago onde acampei estes últimos dois dias, já está bem lá em baixo. Volto a ser premiado com um mar de montanhas a 360º. Glaciares, ora à esquerda ora à direita, lagos, barragens… Mal acredito que estou a viver momentos destes novamente, mas desta vez, sem frio. Nestes dias de espera junto ao lago, andava a pensar que com boas condições e com um pouco de sorte, poderia chegar a Lecco num só vôo. Tinha as faces das montanhas todas viradas para o Sol, à medida que o dia ia avançando. Mas no dia de hoje tinha vento de frente, que comecei a sentir bastante cedo, e quando bateu forte, já nem deu para chegar à crista que estava à minha frente para tentar aterrar num sítio mais cimeiro.

Tinha voltado a estar literalmente nas nuvens, a sobrevoar paisagens magníficas, neste cenário ímpar. Já estava em modo nostálgico enquanto dobrava a asa, pois sabia que só tinha mais um dia aproveitável de vôo daqui a dois dias, e com vento forte de frente novamente. Caminhei 3,7km (e mais uns trocos, pois andei às voltas por causa de caminhos cortados por derrocadas de árvores) num desnível positivo de 526m, e fiquei no quintal de uma casa.

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ck2qjgp3s00013a68jbsbenvh

Dia 14

Acordo com chuva, como as previsões prometiam. Ao final da manhã pára e vem o Sol. Começo a desmontar o material quando me apercebo que tenho tudo molhado na mochila. A cadeira vai para o Sol e a asa fica a secar à sombra de uma árvore. Por fim, começo a caminhada e volto a andar às voltas, com bastantes árvores tombadas pelos caminhos a obrigarem-me a procurar alternativas. Acabo de montar tenda, ligeiramente abaixo do teleférico, e vem o dilúvio. Fico com vistas para o vale de Sondrio.

Dia 15 (16.7.2019)

Faço a minha última subida nas calmas. As nuvens ainda estão ao nível de onde dormi e demoram a subir, e acima dos cumes já se deslocam de N com alguma intensidade. Não estou com muitas expectativas e rapidamente confirmo que o vôo vai ser curto. Tectos baixos e um andamento bastante lento por causa do vento de frente. Depois de passar o 2º vale, o vento aumenta ainda mais e este aumento é sempre acompanhado de muita turbulência – que desta vez me provocou um assimétrico bem jeitoso.

Estava a levar cacete q.b. e mesmo assim não subia, e o vento de frente pouco terreno me deixava ganhar. Decidi então fazer o planeio final e dar por terminada a minha travessia. Depois… foi caminhar até ao primeiro tasco e comemorar. Comemorar ter vencido os meus medos, e comemorar estes maravilhosos vôos que os Alpes me proporcionaram. Sigo de comboio para Colico.

Voo animado: https://ayvri.com/scene/0o5vd4zm56/ck2u4uqfy00013a6881hg75ec

Percorri 4 países, onde caminhei, segundo o MAPS.ME, mais de 118km com um desnível positivo acumulado de mais de 7.000m, a carregar mais de 1/3 do meu peso, e voei 170km.

De tudo o que fiz e das decisões que tomei nesta viagem, não me arrependo de nada – e o arrependimento de não ter feito esta viagem há mais tempo já não faz parte desta viagem. Houve decisões que certamente seriam diferentes caso tivesse mais experiência e mais horas de vôo, mas fiz a omelete com os ovos que tinha. Concretizei um sonho muito graças a todos vocês, pilotos e instrutores, que me foram enriquecendo com as vossas partilhas e conhecimento. Por tudo isso, um muito obrigado a todos!

QUE TODAS AS DESCULPAS QUE ARRANJAMOS PARA NÃO REALIZAR OS NOSSOS SONHOS, NUNCA SEJAM SUPERIORES À VONTADE DE OS VIVER!

https://vimeo.com/373781556

. .

Apps usadas: Goole Maps / Maps.me / Paraglidable / Morecast / Meteoblue / Windy

Sites usados: SpotAir / Winds.mobi

Material usado: Asa / Cadeira light / Paraquedas de emergência / Capacete/ Cockpit / Flymaster Live SD / Mochila / Bússola / Óculos / Luvas / Action camera + suporte p/ capacete + bateria extra + carregador / Balaclava / Chapéu / Gola / Bastões de caminhada / Camelbak / Tenda / Colchonete insuflável / Frontal / Toalha pequena / Saco-cama / Mochila pequena / Protector impermeável de mochila / Pastilhas para água / Lençol de sobrevivência / Botas / Calças.calções / Leggings cardadas finas / Leggings cardadas grossas / T-shirt algodão / T-shirt poliester / Sweet 1ª camada / Sweet cardada / Forro polar / Casaco PrimaLoft / Casaco Impermeável / Luvas de forro polar / Luvas finas / 2 pares de boxers / 2 pares de meias / Botija de gás / Fogão / Isqueiro / Tacho + copo + garfo + faca + colher / Sacos zip / Fita adesiva / 2 cabos usb + adaptador / MP3 / Telemóvel / Powerbank 30.000mAh / Protector solar / Ligadura elástica / Corta unhas / Escova e pasta dos dentes / Sabonete/ Papel higiénico / Bolsa porta documentos / Remendos e fios para asa (e para estendal).

Design a site like this with WordPress.com
Get started